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27 dezembro 2004

Rotina sem fim ?

Murilo Galvão

Rotinas têm fim. Será que esta, não ?

Abelardo e Jurema formavam um casal perfeito. De início, Ju para cá, Bel para lá. Amorzinho, coração, queridinho, meu anjo, fôfo, gato, gata e outros carinhos mais cortavam o silêncio do pequeno apartamento de fundos.

Uma ano se passou de pura felicidade. A sogra, sempre presente e cada vez mais avassaladora, partilhava aqueles momentos.

Não houve como evitar. Combinaram que cada um deveria ter duas horas só para sí, tempo para pensar, jogar aquela pelada com os amigos, ir a um cinema com as amigas.

No início, ainda se escutava no apartamento dos fundos :
- Vim mais cedo ... O filme estava tão chato ... Tava com saudade ....
- Não aguento mais aquelas discussõs de final de jogo. Prefiro sair antes e ficar lhe esperando aqui ....
- Que bom te encontrar em casa, bem ....

Dois, três meses após, os carinhos já não eram os mesmos :
- Pô, não demorei tanto assim ... Foram só umas três cervejas ...
- Será que você não pode esperar um pouco ? Fui à casa de Teresa ver suas fotos na Bahia ...

E a vida seguia tranqüila na vida de Abelardo e Jurema. O silêncio no apartamento dos fundos aumentava, não fosse o tagarelar da sogra prestativa.

E veio o primeiro bebê. As duas horas "privée" de um foram tomadas pelo outro para não serem perdidas. As partidas de futebol passaram a ter quatro tempos de quarenta e cinco minutos. As cervejas pareciam não ter fim.

Depois vieram as tardes de domingo, no Maracanã, ou as manhãs na praia com amigos do trabalho.
- Preciso relaxar, dizia Abelardo para uma Jurema já em trombas.

A mãe, ainda presente, tornara-se a "baby-sitter" favorita e agora constante.

No apartamento dos fundos, a chegada em casa agora era saudada com um simples "oi", sem um simples desvio do olhar fixo na televisão, qualquer hora do dia ou da noite. Comida agora só fria.

Não durou muito o "oi" desapareceu e as entradas sem hora eram quase ignoradas. Pura rotina naquele apartamento dos fundos.

Os happy-hour após o trabalho se sucediam, quartas e sextas-feiras. O grupo era o mesmo de sempre, colegas de trabalho.

Foi assim até que um dia, deixando a porta do bar, nas despedidas de rotina, Abelardo voltou a ouvir:

- Tchau, coração. Te vejo amanhã.

Por uns segundos, Abelardo tremeu e viajou nas lembranças.

Meses depois, agora numa pequena casa de subúrbio, Bel voltou à antiga rotina, aquela que parece não ter fim.

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