Murilo Galvão
(*) - Para os leitores de primeira visita : Piaçava da Silva é o principal personagem e musa deste blog. Sua origem e estórias podem ser lidos em outros artigos anteriores.
- Acho que desta vez o castigo virou tortura. Já estou aqui há mais de uma semana, amarrada a mais umas três Piaçavas, deitadas, no escuro e sobre uma prateleira fria de algum depósito. Não aparece ninguém para nos ajudar. Já tentamos conversar algumas vezes mas só ouvimos lamúrias, umas das outras. Não dá para falar de outras coisas, mesmo. Por isto, volta sempre este silêncio, de tantas horas ou dias, sei lá ... Para não dizer que não ouvimos nada, de bem longe escuto muitos tiros mas acho mesmo que são fogos estourando no ar. Devem estar comemorando alguma coisa, como nos meus tempos de criança, dias do Divino, São João, Santo Antonio, Ano Novo ou casamentos alegres, lá pelas bandas de Cairú ou Valença.
Esta noite, não por causa dos estouros, dormi novamente muito mal. Entre tantos sobressaltos que não sei bem o porquê - talvez pela posição que não me deixa mexer o corpo, acabei sonhando, um sonho muito esquisito.
Nunca soube contar meus sonhos, este então .... Acho que, e não sei porque, procurava chegar à uma porta que era muito larga, branca, coberta por muitas flores. Alguma coisa me dizia que se chegasse lá, do outro lado, estaria livre, encontraria esperanças, a de uma vida melhor, quem sabe voltar para minha terra, deixar a escravidão para trás ?
Acontece que a porta estava longe. Sumia e desapareceia a todo momento de minha vista. Entre ela e eu havia um corredor por onde eu já havia iniciado uma carreira louca em direção àquela porta, de todas as minhas esperanças.
O corredor era largo mas, às vêzes, ficava muito estreito. Não era sempre plano : subia e descia como nas ladeiras da Bahia. Por uns momentos ficava iluminado para logo escurecer. Fazia muito calor alí no início, mas depois observei que esfriou. Para mim, era como uma pista de obstáculos. Pior de tudo é que, não sendo reto, quase sempre escondia a minha porta e eu perdia a noção do tempo e da distância que ainda teria pela frente. Resolvi ir mais devagar. Precisava alcançar e abrir aquela porta. Encontrar minhas esperanças.
Como disse, no início era quente e o quente se misturava com muita chuva, que trazia sujeiras, que trazia um enorme trabalho para mim. Ouvi alguns gritos, choros mas não tive tempo para saber de onde vinham e o porquê. Fiz meu trabalho e fui em frente.
A música era muito alta, as luzes muito fortes, a alegria parecia ser enorme. Por uns quatro dias tive que ficar em pé, num canto, manipulada por alguns homens de amarelo-abóbora e trabalhei muito, muito mesmo, pois tudo alí – naquele pedaço do corredor – era exagerado. Inclusive a sujeira que aquele mundo de pessoas deixava para trás. Por sorte, por uns minutos apenas, um daqueles homens de amarelo me tirou para dançar. Em suas mãos, como se fosse um estandarte, bailei alí naquele corredor alegre e muito largo. Descansei e tive um momento de felicidade.
E vieram outros pedaços. Passei por muitos trechos que mais pareciam arenas de lutas mas acho que eram simples jogos de futebol. Tudo era muito bonito, nada parecido com as peladas que, do alto, assistia, quando criança, a molecada jogar. E naquele trecho de meu sonho e do corredor tive que empurrar muitas garrafas e latas, papeis sujos misturados com muito mijo.
Como tentei explicar, havia de tudo naquele corredor-labirinto onde havia me metido. Por sorte andei também sobre tapetes macios. Naquelas horas, aproveitei para tomar um pouco de ar. De vez em quando via, de relance, a porta salvadora, agora um pouco mais perto, imaginava.
Andei também, encostada, sem fazer nada, em algumas salas luxuosas, o que me exasperava. Aquele não era o meu mundo e eu poderia fracassar. Pelos cantos, podia ouvir conversas que não tenho coragem de contar. Nem em sonho. Engraçado, sempre me pareceram acontecer naquelas salas, acho que escritórios. O ar condicionado e os homens, frios, me davam esta impressão.
Os momentos de escuridão naquele corredor, todos se pareceram com os já vividos em becos escuros por onde já havia passado. Podia ouvir palavras sem nexo e roncos de bêbados, gemidos de alguns que devia estar doentes. Carregada pelos mais sóbrios, fiz a minha parte ajudando todos eles a catar seus pedaços de papeis e bolachas de metal, latas amassadas.
Acho que o pior momento da travessia foi quando a pista ficou inclinada. Subia cada vez mais, descia e tornava a subir, sem cessar, todos os dias. Pensei em desistir pois não aguentaria muito tempo naquele exercício. Por sorte, tive que parar algumas vezes. Sempre que ouvia tiros e, desta vez, acho que eram tiros mesmo. Voltava ao trabalho empurrando, morro abaixo, tudo que encontrava. E mais subia, mais trabalhava, mais plásticos, pedaços de pau, móveis, outras Piaçavas – já velhas, quase mortas – tudo tinha que levar morro abaixo em busca das minhas esperanças.
O piso que era negro como asfalto, de repente, se tornou da cor marrom, um marrom rachado por estrias da terra seca. Sentí logo o cheiro e as lembranças vieram. Foi um momento de recordações. O trabalho de vencer aquele obstáculo era fácil e agradável. O terreiro era pequeno, as folhas da árvores que caiam eram poucas, a titica das galinhas e dos patos que não paravam de sujar tudo logo secavam e eu ia em frente. Havia até uma mulher – engraçado – que de vez em quando vinha me pegar para correr atrás de umas crianças que riam, gritavam - provocando a velha - e desapareciam por detrás do mato próximo. Isto andou me atrasando um pouco mas me divertí naquele pedaço.
E assim fui indo, aos trancos e barrancos em minha alucinada busca. Andei até embarcada, navio cheirando a peixe. De tão enjoada fiquei, só me lembro da volta, pisando sobre vísceras de peixes, cascas de camarões, disputando espaço com biguás. Por pouco não caio n’água ...
E, por falar em aves, aqueles urubús. Foi um pesadelo dentro do sonho, quase pesadelo que ia vivendo. Pilhas e mais pilhas fechando o meu caminho salvador. E eu, suando, tentando limpar toda aquela montanha de imundícies. Por sorte algumas crianças – coitadas e inocentes – e mais uns maltrapilhos que estavam por perto me ajudaram a deixar tudo aquilo para trás e ir em frente. Alí, melhor trabalhar mesmo com as mãos, aprendí.
E assim fui, o tempo passando, a bendita porta da minha esperança cada vez mais perto. Agora já podia vê-la, quase tocá-la. Entre nós, quase nada. Apenas uma bifurcação. Escolhi um dos caminhos e fui em frente. Naquele trecho, podia distinguir uma árvore verde, muito iluminada, coberta pela metade por caixas coloridas. Havia muitas crianças excitadas e adultos sorridentes. Vencer aquele pedaço foi muito fácil : apenas muitos papeis sedosos e caixas brilhantes, rasgados e espalhados pelo chão, ao final da passagem. De tão tranquila estava, tive tempo de olhar para a parede de vidro do corredor, a que me separava da trilha que havia evitado. Do outro lado, mais algumas crianças e adultos. Quase a mesma cena, mas não haviam árvores verdes iluminadas, nem sorrisos, nem caixas para eu catar. Apesar disto, não cheguei a me arrepender da escolha. Fui em frente.
Agora estava diante da porta. O coração batia a mil. O medo de cair alí e perder tudo me assustou. Resolvi parar para descansar e refletir.
Olhei para trás e ví por onde havia passado, o que havia feito. Ganhei coragem com tanto orgulho, não havia mais como desistir, a esperança não poderia me abandonadar, jamais. Abrí a porta larga, branca, coberta de flores e me lancei, quase desesperada.
Ao abrir os olhos, estava sobre a areia cinza e molhada de uma praia. A faixa de areia branca e seca parecia ser muito grande, quase um deserto para mim, pequenina, deitada alí, ainda indo e vindo com aquelas ondas fracas que procuravam me dar forças, fazendo o meu trabalho.
Longe, podia ver muitos edifícios, altos, coloridos. Tinha a impressão que haviam pessoas além daquelas janelas, algumas dançavam. Ouvia uma música, ou melhor, eram muitas, se misturando confusamente em meus ouvidos.
Mais perto, mas ainda distante, outras pessoas, em grupo, todas cobertas de branco sobre o fundo negro da noite, formando um estranho contraste para minha visão.
Bem próximo a mim, um corpo de homem, deitado, caído, levemente sendo lavado pelas ondas que chegavam até êle. Não estava morto, com certeza, pois cantava algumas palavras sem sentido. Devia estar bêbado.
E eu alí, deitada, em êxtase ainda, pude observar então o meu mundo, o da esperança que vinha de tão longe buscar. Flores e mais flores, latas, jornais, algumas algas verdes, quase negras, muitas garrafas, tudo indo e vindo lentamente - até algumas camisinhas e charutos - ao sabor da maré vazante. Estavam todos esperando por mim, pensei.
E me dei conta que a esperança que viera buscar era Eu, nada mais.
Então adormeci, aguardando o nascer do dia daquele Ano Novo de mais trabalho.
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