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10 dezembro 2004

Piaçava da Silva

Murilo Galvão

- Me chamo Piaçava da Silva. Lembro pouco de quando era criança. Morava lá pras bandas de Cajaíba, pertinho de Valença, acho que na Bahia dos meus santos.

Só me lembro bem mesmo era da brisa fria que vinha soprando lá dos lados da Gamboa.

Tudo ia bem e eu quase já em flor quando aquele homem surgiu e com um zás de assustar, passou o facão bem rente ao meu pescoço, por sorte um pouco acima de minha cabeça.

Refeita do susto, já no chão, machucada porém viva graças aos meus poucos anos de menina. E aí tudo começou.

O pau-de-arara, acho mesmo é que era uma caçamba, se foi e com ele, eu e muitas outras que vivíamos aquela doce vida cajaibana. Tudo era escuro e apertado, alí em baixo, espremida por tranças e cachos que ainda gemiam, como eu.

Onde fui parar, não sei. A viagem foi longa, triste, com alguma poeira no início e muita fumaça depois.

Deixaram-me muito tempo ao relento, muito sol e, às vezes, muita chuva, pesada, que em nada lembrava às que havia deixado para trás.

Depois me levaram, lavaram e cortaram. Ainda não sei porque, me vestiram , de cabeça para baixo, com uma saia vermelha, fria, metálica. Pior, me amarraram a um espeto que, esperava, me deixaria ver tudo, novamente, do alto.

Mas não aconteceu assim. Até hoje vejo tudo de baixo, com saudade cada vez maior dos velhos tempos de menina.

Voltei ao castigo da espera em quarto escuro.

Nova viagem e lá fomos nós, outra vez, não sei para onde. Então, até que achei graça. Um monte de piaçavas, como eu, todas espetadas.

Mais uns dias de castigo, desta vez numa solitária, sem entender o porque. Tudo era ainda escuro e abafado. Só alguns baldes e trapos a me olhar.

Novamente veio um homem que me levou. Naquele dia, lembro-me muito bem do calor para onde fui levada e onde se ouvia uma gritaria ensurdecedora que eu não comprendia a razão. Fiquei encostada em alguma parede, com o homem ao meu lado, por muito tempo, mais de uma hora.

Lembro-me de haver escutado um apito mais longo e do silêncio que logo se seguiu.

Pela primeira vez, apesar das prisões e de nada entender, me senti castigada.

Aquele homem que, a princípio me parecia um salvador, tirando-me da escuridão solitária, não cansava de me esfregar, o que me doía muito e arrancava-me alguns pedaços.

Por pura maldade deve ter me ralado sobre o chão que estava muito sujo. Rolei sobre líquidos mal-cheirosos, papéis, garrafas e cacos de vidro, me perdi no meio de tanta sujeira. Acho que me esfregaram até sobre um líquido meio frio e meio vermelho. Penso que era sangue.

Já muito suja e cansada voltei à solitária. Desta vez me pareceu ainda mais escura, abafada, quente e cheirando a mofo. Acho que muitos dias se passaram e nem aquele homem mais apareceu.

O chão onde me apoiava era frio, a única coisa que me confortava, pois fazia me lembrar das brisas frias de Cajaíba.

(Para os cajaibanos do meu tempo de infância em férias. ny, 10/dez/04)

Um comentário:

Anônimo disse...

Salve Murilo,
Finalmente achei a Piaçava. Quando pela primeira vez li o nome me oareceu interessante pela sua criatividade. Depois fiquei pensando o quanto interessante pode ser não apenas o nome, mas o tema, ou melhor a visão das coisas pelo ângulo da piaçava. Brilhante idéia Murilo. Vá em frente, ressucite o Jánio, a sujeira varrida para baixo do tapete, para fora do convéz, de quão as ruas são mal varridas pelos garis e suja por todos nós, etc, etc. Tema não vai faltar. De repente, você criou um belo personagem! Parabens, Abraços Walter