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04 dezembro 2004

O Retôrno dos Quiabos (parte I)

Boas lições são aquelas que, sem a percepção do momento em que são aprendidas, ficam para sempre em nosso inconsciente.

Quem de nós, mais velhos, teve a oportunidade de seguir a mãe em suas turnês semanais por um feira qualquer ? Quem teve, certamente vai viajar comigo nestas lembranças. Para os mais novos, geração da insegurança das ruas e dos passeios pelos supermercados frios, um pouco de esforço no essencial da narração já será o bastante.

Sábados, pela manhã, lá íamos nós, sacolas de palha às mãos, em direção àquela que parecia uma rua distante onde feirantes postavam-se, esprimidos, lado a lado, de um e outro lado da rua. No caminho apertado entre suas vitrines abertas e cheias de colorido, circulávamos todos, indistintos, pretos, brancos, remediados e pobres, em movimentos descoordenados e quase caóticos.

Nosso percurso era sempre certo e único. Seu "já não me lembro o nome" era o nosso "freguês", inversão descabida do termo, ainda hoje ouvida. "Freguês", um substantivo arcaico para novos tempos de "mercados financeiros" e "cliente", este novo ser, importante, exigente e abstrato.

Chegando ao momento da compra, sobre o balcão que tanto podia ser uma pilha de laranjas, de batatas ou de tomates, entre outros artigos, sempre havia o espaço na cesta para os quiabos verdes, indispensável ingrediente no preparo do caruru baiano, religiosamente preparado para alegria de todos nós e, muito mais, em exaltação e homenagem às origens do marido, Raymundo.

Verdade é que ela - a mãe - saía de casa sabendo muito bem o que iria comprar na barraca de seu "freguês", escolhido entre tantos como o vendedor dos melhores produtos. Era inevitável, então, o ritual de escolha dos quiabos, momento de usar todo o seu conhecimento ou experiência de dona de casa aplicada : um a um, em movimentos rápidos com as mãos e os dedos, separava aqueles que lhe serviriam dos que ficavam para trás no alto do amontoado verde sobre o balcão colorido, sem futuros clientes, já disvirginados pelos dedos de alguém que já partira.

Cor, tamanho, aspecto e, sempre, a quebra precisa da extreminadade fina em busca das fibras que os condenariam.

"Check" final no preço e no peso tirado em balanças equilibristas, sempre inclinadas por "descuido" do seu operador. "Choro" sempre atendido, pagamento feito, rumo de volta à casa; e eu, aliviado da tarefa semanal que chegava ao fim, esquecia-me do caruru que dalí viria e voltava os pensamentos para as bolas de gude, pipas e futebol jogado sobre as pedras da rua descalça, pouca e muita coisa ao mesmo tempo para um final de semana que se iniciava.

E o que isto tudo, simples reminiscências de garoto suburbano tem a ver com um blog, escrito em terras frias - muito longe e em época bastante diferente daqueles dias calorentos, tranquilos e inocentes - falando aqui de quiabos, vegetal alienígena nos sofisticados "supermarkets" e "dellis" locais - exceto, com certeza, na distante New Orleans que, para quem sabe, não dispensa o verdinho em algumas de suas tradicionais receitas "creoulas ?

A resposta é que da estória meia fantasiada, meio real e meio mentirosa, há todo um ensinamento válido para aqueles que se pretendem lançar às compras eletronicas nos dias de hoje.

O quiabo de ontem está de volta, travestido em caixas prateadas ou pretas. Ele bem pode ser a moderna câmara digital, o iPod, o DVD, o cell-phone ou qualquer outro objeto de nosso desejo material.

Mas isto é assunto para a Part II de "O Retorno dos Quiabos". Bom final de semana a todos.

(continua na Parte II)

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