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23 dezembro 2004

E Deus Criou a Mulher

Murilo Galvão

Era aquele tipo comum de rua de subúrbio carioca nos anos 50. Curta, sem calçadas e pavimento, esburacada, ligeiramente em declive, muito larga, com casas e alguns terrenos baldios dos seus dois lados. Formava o travessão de um H, espremida entre duas outras, maiores : uma grande escadaria de um lado, uma quase avenida do outro. Com única entrada, sem transito, com exceção de um ou dois carros de moradores mais abastados.

Algumas árvores e muito capim, tudo formando um perfeito cenário para a alegria e diversão da garotada que morava e brincava naquele canto. Era mais uma das gangs da época, as “turmas”, ainda inocentes , puras e ciosas de seu espaço, verdadeiros guerreiros que se armavam de paus e pedras quando precisavam enfrentar a “turma” da rua tal.

Jiminho, Mauricí, Janjão, Teresa, Lúcia, Pedrinho, Daniel, Tania, Jussara, Hélcio foram alguns dos personagens de um elenco maior de peça inesquecível.

Pique, ciranda, anel, amarelinha eram as brincadeiras prediletas, próprias para se mostrar à plateia atenta dos pais vigilantes, debruçados sobre as janelas de nossas casas. O eterno futebol, jogado uma vez por ano – normalmente após o Natal - com bola de couro e, sempre e a toda hora, com arremedos de bolas, feitas com meias velhas e recheadas com jornais ou trapos. O pique-esconde noturno onde os primeiros namoros aconteceram e os primeiros beijinhos foram roubados. O soltar pipas, vício maior a azucrinar a vida dos pais a chamar para os devidos estudos. O “voyeurismo” combinado, onde os primeiros strips foram ensaiados pelas meninas, para deleite dos meninos, atentos às janelas abertas, em cima de muros ou goiabeiras. Os momentos fugidos em alguma sala ou quarto, pais ausentes, onde os primeiros toques fisicos e sexuais aconteceram. Todos, momentos de muitas lembranças, pedindo mais tempo e espaço para serem narrados.

Entre tantas aventuras perigosas e brincadeiras inocentes, espaço e tempo para longas conversas, normalmente sob uma mangueira, na casa de um ou sob uma frondosa cajazeira que espalhava seus galhos por sobre o muro de alguém e alcançava parte da rua. E junto ao poste que também servia para marcar uma das traves do futebol diário é que sentávamos em rodinha para a maioria de nossas conversas.

Foi numa daquelas noites, junto ao poste e debaixo da cajazeira, que lá estávamos quando se juntou a nós, Carlos, de presença pouco frequente pela maior idade, quatro ou cinco anos mais velho que os demais. Acabava de vir do cinema e o assunto não poderia ter sido outro a partir daquele momento.

Vira, burlando o bilheteiro de algum cinema distante, “E Deus Criou a Mulher”, sensação do momento, comentado nos jornais e por toda a parte, conversa de jantar entre os mais velhos. O mundo não era mais o mesmo. Uma francesa, só podia ser – diziam, ousava, na tela, apresentar-se nua e em sequências de cenas picantes. Pura “sem-vergonhice”, pois ainda não era moda o termo “pornografia”.

E nós alí, mudos, engolindo em seco, escondendo o sexo infantil já excitado, ouvindo a narração detalhada de Carlos.

Até então, tinham sido só algumas poucas revistas em quadrinhos, suecas ou norueguesas, exibindo desenhos eróticos ou fotografias de louras, nem sempre esbeltas como as de hoje, mostrando seios, pernas e bundas fartas. Para deleite maior da imaginação, havia ainda uns poucos “romances” de Cassandra Rios; o best-seller, “Éramos Três”, já havia sido lido e relido por todos, rodando de mão em mão.

Pois agora podia ser no cinema. Cenas vivas, personagens vivos, acompanhados no escuro. Problema era a idade que ainda nos afastava daquele prazer, tão barato de ser obtido.

E a narração prosseguia. Certamente naquela noite ninguém terá dormido de imediato e os sonhos de todos nós, alí, terão sido muito doces. Tenho certeza.

A cena do banho ficou então marcada em mim para sempre. Brigite Bardot, a musa daqueles anos, lábios carnudos, sexy, quase ninfeta como Lúcia, Tânia, Vera e outras entre nós, saindo do banho naquele roupão branco e maravilhoso.

Naquele momento, dava para sentir o perfume que ela usava.

E a câmera focalizando em close seus lábios em sorriso malicioso, afastando o zoom ao mesmo tempo em que ela afastava as abas do roupão que escondia seu corpo ainda molhado. Primeiro os seios, o ventre e, por fim, o sexo, puro, ao vivo e alí para ser comido com os olhos ou pela nossa imaginação naquele momento.

Quanto tempo durou a cena na tela nunca pude saber ao certo. Para mim, durou a eternidade pois persiste até hoje.

Por muitos anos procurei, instintivamente, por aquele filme sendo reprisado em algum lugar da cidade. Os anos passaram, nenhum cine-clube, nenhum vídeo, Internet, nada. A vida se passando e um sonho se esvaindo.

E foi quando, cerca de dois meses atrás, ligo a TV, rotina despretensiosa de todo início de noite na vida reclusa da serra. Surfando sobre o controle remoto, deparo-me com Brigitte, a mesma Bardot das velhas lembranças. Congelo. Duas cenas e me convenço de que, finalmente, saberia como Deus Criou a Mulher. Era o filme esperado há mais de quarenta anos, alí, na minha frente, no silêncio da casa e no escuro da quase-noite. Quase tudo igual ao cinema que nunca pude ir.

Mal me acomodo no sofá, olho grudado na tela, percebo que eram os momentos finais do filme. BB dança maliciosamente, mas totalmente vestida, sobre uma mesa para os que, percebo, são seus dois amantes. Mais duas tomadas e o filme acaba.

Frustração total.

Havia perdido a cena do banho.

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